quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Encarnação anunciada


Maria Salustiana estava grávida de nove meses e um dia. Vivia no Morro da Encarnação, onde diariamente nascem e morrem os mais sanguinários filhos do descaso político/social. Assim que parisse, sairia daquela atmosfera hostil, pensava ela; não queria que seu filho sofresse más influências. Mas parece que tem gente que já nasce com o destino encomendado. Naquela manhã, Salustiana foi tomada por estranhos presságios. Só pensava em coisa ruim.

À tarde, quando o sol se foi, o céu começou a choramingar. Às pressas, Salustiana foi até o beiral para socorrer a roupa de casa. Pegou tudo e levou para uma pequena choça que ficava no fundo do quintal. Abriu a porta e jogou os trapos em cima de um velho sofá que ficava bem perto da entrada.

De repente, notou sombras se movimentando nas paredes e ouviu murmúrios vindo do canto oposto de onde se encontrava. Voltou-se rapidamente e viu um homem ajoelhado no chão. Era um conhecido justiceiro que, por roubar da metrópole para socorrer a fome dos necessitados do morro, era idolatrado, principalmente pelos mais jovens.

Estava todo ensangüentado. Rodeavam-no um sem-número de velas acesas, que produziam as sombras, e enquanto seus braços e sua testa tocavam e se afastavam freneticamente do chão de barro, sua voz soltava grunhidos quase inaudíveis.

Inicialmente, mais preocupada do que com medo, Salustiana aguçou os ouvidos e tentou entender o que o homem falava. Parecia que ele estava agradecendo a alguém por lhe dar outra vida após a morte. Nesse momento, relembrando os inúmeros fatos similares ocorridos no morro, o medo chegou de verdade e tomou conta dos seus pensamentos de mãe. Já amedrontada, segurou o ventre com as duas mãos e saiu do casebre da mesma forma que entrou, sem ser notada.

Andando cuidadosamente, foi chamar a vizinha, Dona Epitácia, que além de parteira, carregava a fama de conhecer os segredos do morro. As duas foram ver o homem, a fim de entender o que se passava. Ao ouvir as suas repetidas lamúrias de agradecimento, Epitácia não titubeou:

- Quando morrer, o espírito desse homem vai encarnar no seu menino.

- De jeito nenhum, disse Salustiana, o meu filho não vai ter o mesmo destino da maioria das crianças que nasce na nossa comunidade, vou embora desse lugar, agora mesmo, não quero que no futuro, por falta de alternativas civilizadas, ele entre no mundo do crime.

Mas a notícia foi tão aterradora que a pobre mulher entrou em estado de parto ali mesmo. Foi todo muito rápido.

Enquanto o menino levava as palpadas de Epitácia e chorava para a vida, as velas se apagaram e sumiram com o homem. Ficaram apenas as roupas, alguns documentos e um revolver.

Já em casa, Salustiana ficou assustada ao ver o olhar estranho da criança.

– Você ainda não se acostumou com essas encarnações sociais, comadre? Os garotos dos morros não têm muitas opções de vida. Com carinho, perseverança e muita educação escolar, talvez você consiga mudar o gênio e o destino dele.

E, sob os olhares desanimados da pobre mãe, a cuidadosa Epitácia queimou as roupas e a foto do marginal. Em seguida, enterrou bem fundo o revolver que ele deixara. Não queria deixar vestígios que pudessem lembrar aquele triste episódio.



SÉRGIO COSTA
CONTADOR

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