quinta-feira, 5 de abril de 2012

O estupro presumido e a lei Maria da Penha


Em pouco mais de um mês o Judiciário brasileiro proclamou duas decisões bem impactantes para o universo feminino. Na primeira, o STF afirmou que a apuração dos casos de violência doméstica não mais dependeria da representação da vítima para ter andamento. No julgamento do processo, sob a relatoria do
ministro Marco Aurélio, a ministra Cármen Lúcia manifestou-se pontuando a situação de poder que mutilava a reação da mulher, de sorte que o Estado deveria superar essa fase para proteger a vítima independentemente de sua manifestação. Reconhece-se uma situação de extrema fragilidade na qual a mulher se vê sem condições reais de esboçar reação. Desse modo, a mulher deixava de ter o poder de decidir sobre o destino da apuração, que passava ao Estado. Com certeza essa nova situação vai dar nova feição aos feitos no juízo penal de violência doméstica, com grandes indícios de que sejam reduzidos os números que envergonham a Nação e o Estado.

Na segunda decisão, o STJ, em processo sob a relatoria da ministra Maria Tereza, fortalece o entendimento, que já vinha sendo proposto, de (digamos) ‘flexibilização’ da presunção de violência no caso de estupro em menores. A decisão causou impacto, com grandes protestos de várias entidades. A ministra da Secretaria de Estado de Direitos Humanos, Maria do Rosário, lamenta a decisão lembrando que os Direitos Humanos de crianças não podem ser relativizados. A relativização de direitos é complicada. Muitas vezes, a título de hermenêutica na verdade se legisla.

No caso de atualização (ou aggiornamento, como preferem os acadêmicos), é bom que se tenha sempre em mente, uma velha e sábia máxima: o que é anormal não se torna normal pelo simples fato de ser freqüente. Não li os autos e a opinião fica condicionada ao que se lê na imprensa. Há um informe que assusta: o acusado teria tido relações com três garotas de doze anos. Se eventualmente alguém dissesse que havia uma jovem que ele não percebeu que era menor e se envolveu, vamos acreditar que haja sido enganado. Mas, três vezes?! E todas de 12 anos?! Pelo que se vê, não eram apenas as meninas que ‘faziam ponto’.

As meninas são tidas por emancipadas porque já estavam na ‘vida fácil’. É muito fácil dizer que aquilo é ‘vida fácil’.

Se as meninas estavam trajadas como adultas eram ‘quase-mulher’ (para relembrarmos os conceitos romanos). Nessa situação, o acusado seria um ‘quase-pedófilo?”. Com todo o respeito, a decisão (inadvertidamente, é certo) repete e cristaliza uma deformação conceitual: as meninas são safadas e o ‘cliente’ foi vítima de engano provocado pelas jovens prostitutas. Como é possível aceitar que essas meninas eram reconhecidamente prostitutas, aos olhos de todos e sob a inércia geral? Sim, se apareceram clientes, também apareceram as testemunhas que demonstraram a presença das mesmas no ‘ponto’. E não se fez nada. Tolerou-se que vivessem abandonadas, à margem das ruas e à mercê da concupiscência de alguns. Enfim, transfere-se para as vítimas a culpa do ocorrido. No velho ranço de nossa cultura machista, os parachoques de caminhão (onde muitas vezes essas garotas são transportadas) trazem o lema: mulher
que se vende não vale o que recebe. A frase para ficar mais correta, deveria ser completada com uma indagação: e o homem que compra, vale o que paga?

Um observador à distância, confrontando as decisões do STF e do STJ, tão próximas no tempo, por certo perceberá que no primeiro caso tratou-se a adulta como incapaz e no segundo a incapaz como adulta.

Como explicar que uma mulher adulta não tenha poder para decidir sobre uma agressão e recebe proteção do Estado que age independentemente de sua vontade e que uma menina de doze anos é tida como uma perigosa sedutora de incautos, que foram vítimas de suas artimanhas? O ‘cliente’ absolvido corre sério risco
de sofrer uma condenação... se fumar em algum local proibido. Quando uma nação ainda permite que as suas meninas de doze anos tenham de recorrer à prostituição e absolva os seus ‘clientes’, essa nação será tudo, menos a ‘Mãe Gentil’ que se proclama em seu hino.



ROBERTO G. DE FREITAS FILHO
PROFESSOR DE DEONTOLOGIA JURÍDICA
NA UFPI DEFENSOR PÚBLICO

Nenhum comentário:

Postar um comentário