quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

Ulisses e as sereias da república brasileira

Quando voltava à Ítaca, sua terra natal, o navegador Ulisses se viu diante do canto das sereias, um perigo ainda maior dos que houvera enfrentado na guerra de Tróia. Sabendo que não resistiria à musicalidade das vozes vindas do mar, o personagem de Homero ordenou que seus subordinados lhe
tapassem os ouvidos com cera e acorrentassem-no no mastro do navio. Reconhecendo as fragilidades da sua alma, disse-lhes que, em hipótese alguma, obedecessem a qualquer ordem de soltura que ele pudesse vir a emitir posteriormente.

A julgar pela visão teórica, parece que nos espelhamos em Ulisses, não em Montesquieu, para construir o nosso modelo democrático. De fato, muita coisa foi feita para evitar que o homem escute o canto e se entregue de corpo e alma a duas antigas e sedutoras sereias: a impunidade e a corrupção.
A fim de evitar o iminente perigo, criamos uma série de instituições fiscalizadoras e tribunais de justiça. Como se isso não bastasse, criamos ainda o Ministério Público e a Polícia Federal. Enfim, disponibilizamos muitos impostos para impedir que a paixão vença a luta contra a razão.

Por que, então, apesar dessa blindagem aparentemente intransponível, as musas da impunidade e da corrupção ainda conseguem encantar o homem, levando-o a cometer ações ilícitas com o dinheiro da sociedade e, com isso, condená-la as desgraças do subdesenvolvimento? Porque, entre outras permissividades, estamos cometendo uma imperdoável omissão republicana.

Para chegar a essa conclusão, utilizeime do processo de empatia. Imaginei-me eleito representante do povo para comandar um dos Poderes Executivos da República, do qual recebo prerrogativas legais para escolher/ indicar homens que têm o dever de me fiscalizar e/ou julgar. “Ora, mas não sou eu quem gasta, traça e esbagaça o dinheiro dos impostos da república?! Pelo amor de Deus, quem teve essa idéia maravilhosa de me conceder o privilégio de escolher os meus potenciais algozes?! Se a sociedade se omitir, ou seja, não eliminar esse defeito, a minha natureza egoísta jamais se permitiria
revogá-lo”.

Olhei também para o outro lado e vi que a omissão é igualmente devastadora. Pois é, imaginei-me no lugar do indicado/escolhido e conclui, de pronto, que três aspectos eu levaria em conta para aceitar ao convite: polpuda remuneração, cargo vitalício e laços de amizade com o poder. Nestas condições de
dependência, pensei, seria praticamente impossível fiscalizar o meu padrinho com os rigores da lei.

Assim é o nosso arremedo de República. Quem entra na política representativa, que deveria governar indiretamente o país ouvindo os anseios do povo representado, a primeira coisa que faz é tirar dos ouvidos a cera da sensatez e, em seguida, desatar os laços da boa formação ética. Depois, é só cair nos
braços daquelas duas honoráveis sereias e gozar as coisas boas da vida com os impostos do “povo soberano”.

Vez por outra, como que denunciando tamanha incoerência republicana, ondas de moralidade e justiça se agigantam em efêmeras turbulências, mas sem riscos para o navegador aventureiro.


SÉRGIO COSTA
CONTADOR

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