segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Do trágico ao entendimento



Por mais de 50 dias ininterruptos, o fato noticioso da morte da estudante Fernanda Lages respingando, especulativamente, no estrato social médio-alto tupininquim-teresinense mobilizou celebridades midiáticas, desocupados, autoridades, especialistas e outras “pessoas holofóticas” carentes de notabilidade. De fato, todos estão ávidos por materializarem o desejo insaciável e inatingível de visibilidade, controle, certeza e
segurança permanentes numa “sociedade líquido-moderna(...) em que as condições sob as quais agem seus membros mudam num tempo mais curto do que aquele necessário para a consolidação, em hábitos e rotinas, das formas de agir” (Bauman, 2007).

No “caso Fernanda”, o clamor popular ou comoção local midiatizada, na verdade, tem menos de consciência coletiva” (Durkheim, 1858-1917) e mais de cumplicidade coletiva com “a estética da barbárie e da noticiabilidade jornalística” – através da fragmentação da informação, espetacularização do fato noticioso e a exploração dos elementos contingenciais –, inerente à produção jornalística (Costa, 2002). Ou seja, “a materialização de uma racionalidade administrada, própria da indústria cultural” que “quanto mais circunstanciada pela imediatez para a transmissão do artefato noticioso, essa racionalidade administrada torna-se mais evidente, pois se conforma aos padrões da técnica de codificação jornalística” (Costa, 2002)


Pela concepção de Muniz Sodré (2002) a espetacularização da morte de Fernanda Lages pode ser vista como uma imagem paradigmática da violência representada, “isto é, discursivamente mobilizada e manejada tanto pelo jornalismo(...) quanto pela indústria do entretenimento(...), com a finalidade de conquistar maior audiência”. O fato noticioso foi posto na ribalta do coliseu midiático num jogo imagético especulativo, cujo ato final é o “êxtase midiático”, no caso, com a investigação policial naufragando a deriva sob pressões de familiares, do clamor popular, das implicações políticas e da inabilidade tecnacientífica. Os discursos de jornalistas, autoridades, fofoqueiros e especialistas ou “especulistas” em investigação criminal tentam traçar uma linha divisória entre a opinião dos teleguiados desejosos por justiça a qualquer custo e as pessoas engajadas que os carregam em momentos de comoção, atiçando-os e fazendo com que eles revivam as suas próprias tragédias pessoais em outros fatos noticiosos, e a deslegitimação discursiva dos juristas pautados nos princípios da legalidade que eles, e seus seguidores teleguiados, rotulam de “legalistas da morosidade”.


O “caso Fernanda”, de um lado, expõe uma “ordem terreal”, onde o sentido estético da violência produzido pela espetacularização midiática sobrepõe os preceitos legais, os tribunais são transformados em picadeiros; e a Constituição, em mais um adereço de cena. Desse modo, “a legitimidade da violência fundadora de direito se desgasta continuamente na ordem terreal” (Sodré, 2002). De outro lado, reafirma a fragilidade de gestão e tecnocientífico da policia judiciária carente de referenciais morais e éticos consolidados para fazer frente à desconfiança, a desorganização, a imprevisibilidade e as precipitações investigativas. Sob tais condições, historicamente a reboque de favores políticos, a polícia judiciária tem sido conduzida, convenientemente, para confundir o “segredo de justiça” na investigação com a manipulação de fragmentos de dados em bastidores. Parece razoável supor que há uma clara ligação entre os abismos que se abrem entre, de um lado, o desejo coletivo de “conter a violência, salvar vidas, proteger o patrimônio, reduzir as desigualdades no acesso à justiça, exorcizar o medo, controlar a criminalidade, (...) buscando a segurança inteligente e criativa” (Soares, 2006) e, de outro, a “reprodução reiterada” (Sodré, 1987) do trágico ao
entretenimento. “Esse esgotamento do fato pelo excesso de redundância é uma característica da indústria cultural, particularmente do meio televisivo, em virtude da evidência da exposição da imagem” que “apreende a atenção do telespectador nos limites de ser visto não mais como acontecimento trágico, e sim na condição de entretenimento” (Costa, 2002). Portanto, não será de espantar que, com base na ideia de “furo jornalístico”, como uma jornada mercadológica do vale-tudo e a noção de “segredo de justiça à moda da causa”, a polícia venha divulgar “com exclusividade!”, exibindo cópias de laudos e depoimentos, que Fernanda Lages não morreu, mas ressuscitou.




ARNALDO EUGÊNIO
DOUTOR EM CIÊNCIAS SOCIAIS/ANTROPOLOGIA




Nenhum comentário:

Postar um comentário